26 de jul. de 2010

LIVRO TTSSS



A matéria é de janeiro, mas mesmo assim é sempre interessante pra quem ainda não estava por dentro de uma das maiores publicações sobre pixação, arte tipicamente paulista e que agora recebe uma atenção especial da mídia.

A matéria:

Uma agenda que não se sabe de onde veio. O ponto de partida de ttsss... é tão incerto quanto o nascimento da pichação [que vamos usar com X, como os praticantes preferem] em São Paulo e, conseqüentemente, no Brasil. As primeiras escritas "muralistas" são do tempo da ditadura, sempre protestos. Anos mais tarde, no começo da década de 80, os punks se apossaram da idéia para demarcar o território das gangues. Porém, a pixação como conhecemos hoje, com essa tipografia tão característica, data da virada dos dos 80 para os 90 – mas ninguém sabe quem inventou. Assim como o pixador e grafiteiro Boleta, dono da tal agenda e organizador do livro, não sabe quem foi o primeiro dono da peça. "Eu comecei a pixar em 1989 e, no ano seguinte, achei essa agenda de 88, que já tinha uma assinatura, a do Chacinas. Eu fiquei com ela e até hoje não sei quem começou", entrega Boleta, que cultivou a agenda até 1998. No universo da pixação, a agenda desempenha a função de colecionar as assinaturas das grifes e turmas que seus donos admiram.

Um belo dia, Boleta conheceu a diretora de arte Pinky Wainer, uma das proprietárias da Editora do Bispo, que na ocasião que topou com a famosa agenda convidou-o para organizar o livro. O que a princípio seria a reprodução das páginas desse documento histórico dos rabiscos paulistanos (70% das páginas da agenda estão em ttsss...), aos poucos foi crescendo e ganhou imagens de pixadores em ação feitas pelo fotojornalista João Wainer, textos inspirados do mesmo João, da Pinky e do jornalista e escritor Xico Sá, e, o mais esclarecedor de tudo, alguns exemplos de "pixografias" de todas as letras do alfabeto. E é exatamente na tipografia que a pixação se firma como expressão artística, como linguagem contemporânea do século 21. "A idéia é mostrar a originalidade e qualidade do trabalho gráfico. Para isso a gente tirou do muro e do contexto sujo", diz Pinky, que acrescenta: "Você não encontra esse alfabeto em lugar nenhum do mundo, e os pixadores não têm essa noção, por isso que é bom. Essa tipografia foi criada sem uma intenção, e isso é uma coisa rara". "O que tem no livro são só alguns tipos de letras, algumas referências, porque é um lance infinito", adianta Boleta, um dos fundadores da grife Vicio, uma das mais expressivas da história, que em seu auge, em 1992, chegou a ter quase 40 pixadores lançando a alcunha pela cidade. Segundo Boleta, como "é feio trocar de pixo, é igual mudar de time de futebol", o Vicio continua na ativa, com menos integrantes, é verdade, mas ainda assim não é preciso rodar muito para trombar com um.

Pra inglês ver O que pouca gente que ojeriza o pixo por aqui sabe – e ttsss..., que será vendido em Berlim, Nova York, Amsterdã, Paris, Madri e Barcelona, vem para ajudar a consolidar – é que a pixação virou artigo de exportação. Para se ter idéia da admiração dos gringos, tem um dinamarquês que está usando São Paulo como apelido e está bombardeando a Europa com letras no estilo daqui. "Acho que lá fora o livro terá uma puta repercussão porque, além da tipografia ímpar, do traçado louco, mostra a riqueza desse tipo de arte que é tão de vanguarda e desobediente a ponto de não ser aceita. Assim como os impressionistas, quando surgiram, não eram aceitos nos salões oficiais de Paris. Os pixadores são os novos Gutenbergs [alemão considerado o inventor da tipografia]", acredita Xico Sá que, quando perguntado que alcunha usaria se fosse pixador, depois de refletir um bocado, responde: "Estou em dúvida entre vários nomes de terroristas, mas eu mandaria um Korisco, em homenagem ao cangaço e a Glauber Rocha".

"A pixação é valorizada fora do Brasil porque tem uma estética única. Acho legal porque esse tipo de letra é uma parada criada em São Paulo", afirma Boleta. Já quanto à repercussão em território nacional, a coisa muda. Xico Sá acha que por aqui "muita gente vai estranhar, pois insistem em tratar o assunto como vandalismo e bandidagem. A onda oficial e até das ONGs é transformar o pixador em grafiteiro como se o grafite fosse uma espécie de purgatório para salvá-los do mal". Para Boleta, o livro é importante porque é o primeiro documento de grande porte da pixação. "É uma arte contemporânea que precisa ser documentada porque é efêmera. Essa não é minha intenção, mas se o livro ajudar as pessoas a enxergarem a pixação com outros olhos, acho legal", acrescenta.

No alto, entre as duas páginas, exemplos de como a letra "b" pode aparecer nos muros. Do lado direito, no alto, um flyer de uma pixo-party do começo dos anos 90; abaixo, imagens da agenda de Boleta, o evangelho da tipografia de rua paulistana

Boleta Russa Se um dia a pixação será considerada arte e conquistará espaço nas galerias, se a repressão policial vai amenizar, como aconteceu com o nosso grafite, só o futuro irá dizer. "Com certeza ela vai conquistar espaço nas galerias de arte, mas isso vai acontecer primeiro lá fora e depois no Brasil, pra variar", alfineta Xico. "Aqui a discussão do vandalismo é muito forte e vai atrasar esse processo." Boleta, que por sorte – ou azar, depende do ponto de vista – não tem nenhuma passagem pela polícia, garante que a repressão policial continua a mesma. "A parada mais punk que rolou comigo foi quando estava pixando de dia o muro de um terreno baldio. A polícia chegou, me levaram pra dentro do terreno e perguntaram se eu conhecia roleta russa. Achei que os caras estavam só me apavorando. Aí o policial deixou duas balas num tambor de seis, girou, encostou na minha cabeça e TEC. Depois ele falou: ‘Você está com sorte hoje, pode ir embora’", conta Boleta.

Em seu texto para o livro, o fotógrafo João Wainer escreve: "Mas não é só porque acho pixo bonito que digo que é arte. Acho que quem nasce pobre na favela é programado pra ficar quieto, e quando ele deixa de lado o lugar que lhe foi destinado e se expressa através de uma pixação de 20 metros num viaduto, ele está fazendo exatamente o que grandes artistas fizeram através de suas obras: estão incomodando, e a sensação de incômodo é o princípio ativo de toda a arte que se preze". E cita Hakim Bey, o profeta do caos, explicando o Terrorismo Poético: "... faça-o para as pessoas que não perceberão [pelo menos não imediatamente] que aquilo que você fez é arte. Evite categorias artísticas reconhecíveis, evite politicagem, não argumente, não seja sentimental. Seja brutal, vandalize apenas o que deve ser destruído, faça algo de que as crianças se lembrarão por toda a vida, mas não seja espontâneo a menos que a musa do Terrorismo Poético tenha se apossado de você. Vista-se de forma intencional. Deixe um nome falso. Torne-se uma lenda. O melhor TP é contra a lei, mas não seja pego. Arte como crime, crime como arte...".

É como Timothy Leary, um cidadão de mente aberta e vanguardista, disse há muitos anos: "O caos é lindo". Então, já que ele está instalado completamente nas grandes cidades, trate de apreciá-lo. Até porque se a pixação não existisse, os outdoors clandestinos, as faixas e placas penduradas de surdina, a propaganda política e a de consumo continuariam invadindo o seu campo de visão sem pedir licença. Aliás, todos os praticantes acreditam que a pixação não vai acabar nunca. "Assim como o Brasil é o país do futebol e os moleques já crescem jogando bola, São Paulo é a terra da pixação e os moleques estão nas escolas públicas fazendo pixo no caderno, na carteira e no banheiro", finaliza o viciado Boleta.


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