Arte orgânica
Top da tatuagem brasileira, Jun Matsui diz fazer obras ‘sob medida’ para o corpo e o espírito
"É assim que é. Eu vim e disse que queria no ombro. Só. Tamanho, desenho... não pedi nada. Então, ele vem e faz. Claro que confio. O cara é top no mundo." Na sala da casa onde mora o tatuador e designer Jun Matsui, de 38 anos, o cliente - empresário da banda de reggae brasileira Natiruts - aproveita para experimentar uma peça da coleção de joias, escapulários, anéis e pingentes de ouro e prata que Jun lança semana que vem no Rio de Janeiro e em outubro em Tóquio.
É a primeira vez desde que imigrou para o Japão e lá viveu por 16 anos que esse pernambucano passa uma temporada longa no Brasil. Especialista em uma arte tão antiga quanto estigmatizada - a ponto de confundir-se com a delinquência, na visão de alguns - Jun enfurnou-se no imóvel elegante e despojado que alugou no Alto de Pinheiros, bairro nobre de São Paulo, para aventurar-se pela ourivesaria e reativar a confecção street wear que lhe rendeu um bom pé-de-meia no Japão. Sua paixão mais duradora, no entanto, continua sendo a tatuagem, a que se dedica com intensidade e em pequeníssima escala: dificilmente faz mais que quatro delas por mês. Para "vestir uma tatuagem" de Jun, na expressão que ele gosta de usar, é preciso paciência oriental: a fila de espera chega a três meses e o processo é mais lento do que em qualquer dos estúdios profissionais e amadores do gênero espalhados pelo Brasil.
Top da tatuagem brasileira, Jun Matsui diz fazer obras ‘sob medida’ para o corpo e o espírito
"É assim que é. Eu vim e disse que queria no ombro. Só. Tamanho, desenho... não pedi nada. Então, ele vem e faz. Claro que confio. O cara é top no mundo." Na sala da casa onde mora o tatuador e designer Jun Matsui, de 38 anos, o cliente - empresário da banda de reggae brasileira Natiruts - aproveita para experimentar uma peça da coleção de joias, escapulários, anéis e pingentes de ouro e prata que Jun lança semana que vem no Rio de Janeiro e em outubro em Tóquio.
É a primeira vez desde que imigrou para o Japão e lá viveu por 16 anos que esse pernambucano passa uma temporada longa no Brasil. Especialista em uma arte tão antiga quanto estigmatizada - a ponto de confundir-se com a delinquência, na visão de alguns - Jun enfurnou-se no imóvel elegante e despojado que alugou no Alto de Pinheiros, bairro nobre de São Paulo, para aventurar-se pela ourivesaria e reativar a confecção street wear que lhe rendeu um bom pé-de-meia no Japão. Sua paixão mais duradora, no entanto, continua sendo a tatuagem, a que se dedica com intensidade e em pequeníssima escala: dificilmente faz mais que quatro delas por mês. Para "vestir uma tatuagem" de Jun, na expressão que ele gosta de usar, é preciso paciência oriental: a fila de espera chega a três meses e o processo é mais lento do que em qualquer dos estúdios profissionais e amadores do gênero espalhados pelo Brasil.
Dekassegui. Filho de japonês com pernambucana, ele chegou a Tóquio depois de trabalhar na fábrica da Toyota em Nagoia. Hoje, sua arte enfeita até a pele da cantora inglesa Rihanna
Na primeira sessão, nada acontece, além de uma conversa genérica, acompanhada de uma xícara de café ou chá verde. "Mas é possível você sair daqui vestindo uma tatuagem sem a gente trocar uma palavra sequer", diz ele. No segundo encontro, Jun desenha diretamente na pele do cliente, e o esboço é transferido para uma folha de plástico adesivo. Só na terceira é que entram em cena as agulhas, e Jun, após transferir de volta a imagem do plástico para o corpo, tatua apenas o contorno do desenho. Vêm então as sessões de preenchimento, no mínimo uma, mas que podem passar de três, dependendo do tamanho do grafismo. Cada uma dessas etapas sai por R$ 1.200 - o que significa que "vestir" Jun Matsui pode custar mais que ostentar um terno Armani. Um progresso material significativo para o garoto que embarcou para o Japão sem faculdade nem um iene no bolso.
Primogênito dos cinco filhos de um japonês com uma pernambucana, Jun nasceu em Recife e passou a infância em Maracaju, Mato Grosso do Sul, antes de a família se mudar para São Paulo. "Meu pai é da Província de Kumamoto e foi o único membro da família que se casou com uma estrangeira. Até hoje, se você visitar meus parentes paternos no Brasil, vai ver que eles falam, comem e vivem como japoneses." Da adolescência no bairro paulistano do Jaguaré, suas melhores lembranças são a convivência com os amigos skatistas. "Comecei a andar com 12 anos. Foi a primeira vez na vida que me senti pertencendo a um grupo." Apaixonou-se pelo universo do grafite e da tatuagem, e da rua só voltava na hora de comer e de dormir.
O casamento dos pais entrou em crise e veio a separação, que desestruturou ainda mais a família. Eram os conturbados anos 90, com a eleição de Collor desfazendo as ilusões da redemocratização e a crise econômica empurrando jovens brasileiros para o exterior. "Lembro do dia em que minha mãe me levou para ver um emprego em uma papelaria no Largo de Pinheiros. Quando o dono me falou quanto ia me pagar por mês, decidi na hora que ia embora do País."
Vida de imigrante
A oportunidade surgiu quando o filho de um feirante do bairro lhe contou que estavam recrutando operários nisseis para trabalhar no Japão. Agências clandestinas organizavam viagens em troca de uma comissão das fábricas. Com 18 anos, Jun foi a uma delas, no bairro da Liberdade. Ele não falava japonês nem inglês, mas tudo o que lhe pediram foi o passaporte. Avisou a família na véspera da viagem. "A única grana que levei foram US$ 100 que um tio me deu. US$ 40 gastei com uma camiseta e um boné na escala em Los Angeles", ri o imigrante.
Se em retrospecto a experiência lhe parece divertida, os meses que se seguiram não foram fáceis. Jun viu-se na desoladora cidade de Nagoia, penando na linha de montagem da Toyota e dormindo em um galpão com outros dekasseguis. "Via pais de família chorarem de desespero. No quarto mês, fui embora sem nem pegar meu último salário." O rumo foi Tóquio, onde passou a ajudar um primo que instalava cabos de fibra ótica nos subterrâneos. Apesar das dificuldades, conheceu uma sociedade menos desigual que a de sua infância. "No Japão, você vê o CEO da Sony andando de metrô."
Um mundo novo começou a se desenhar para Jun quando ele arrumou emprego de bartender no badalado Gaspanic, no bairro boêmio de Roppongi. Anos de festa e diversão. "Foram dois verões em que tive, da maneira mais plena, aquela sensação de estar no lugar certo, na hora certa", lembra. Aos poucos, aprendeu inglês e japonês - em que até hoje não se considera fluente. "Meus amigos dizem que uso um vocabulário afeminado, porque a aprendi a falar com as mulheres..." Uma delas, a cantora nipoamericana Ann Lewis, foi quem enfim o levou à tatuagem, ao levá-lo a Los Angeles e apresentá-lo ao dono de um estúdio que lhe deu dicas e o presenteou com um kit básico.
De volta ao Japão, fez em si próprio seu primeiro trabalho: uma guitarra estilizada no antebraço esquerdo. Combinou um pendor autodidata com a observação de mestres como o japonês Horiyoshi, de quem se tornou amigo e ganhou uma tatuagem feita com a técnica milenar do bambu. Trabalhou em casa, nas horas vagas , até seu traço começar a ser reconhecido na cidade. No meio do caminho, alguns sustos, como quando um conhecido membro da máfia coreana bateu em seu apartamento no meio da noite.
O homem tinha o tórax quase todo tatuado e pediu que Jun complementasse uma parte que faltava. Suando frio, o pernambucano tentou recusar, mas o mafioso insistiu e jogou um maço de dinheiro na mesa. No dia seguinte, voltou dizendo que o desenho estava errado. "Posso corrigir, mas vamos ter que esperar uns dias para cicatrizar", balbuciou Jun. Poucas horas depois, o homem surgiu novamente. "Pensei que ia morrer. Aí ele sorriu e disse que tinha ido consultar seu mestre de tatuagem e ele a havia aprovado."
Finalmente, pintou o sucesso. Seu estúdio, o Life Under Zen (L.U.Z.), ficou conhecido em Tóquio. Em 2006, uma editora japonesa lançou uma coletânea de sua obra, intitulada Hari - "agulha", em japonês. Jun tatuou gente como a cantora inglesa Rihanna, o fotógrafo de moda italiano Mario Sorrenti e o vice-presidente do Deutsche Bank no Japão, que prefere se manter anônimo. Tudo parecia zen, até que a inquietude que o levara à linha de montagem da Toyota em 1990 bateu de novo. Em 2007, estava de volta a São Paulo. "O Brasil é um país ao mesmo tempo medieval e futurista. Tem gente aqui com uma abertura de pensamento que não encontrei em parte alguma", tenta explicar. Nota que na terra natal ainda há preconceito em relação à profissão, mas percebe sinas de mudança. "Outro dia li uma coluna do escritor Luis Fernando Verissimo tratando o tema de forma sensível e bem informada."
Na quarta-feira, a Câmara Municipal aprovou um projeto de lei que obriga estúdios de tatuagem, piercing e maquiagem definitiva a ter cadastro na Prefeitura e adotar novos procedimentos de higiene e controle. O Sindicato dos Tatuadores de São Paulo (Setap-SP), em nota à imprensa, considerou a lei "um retrocesso" que inviabiliza a profissão. "Sou rigoroso com a segurança e apoio a lei, mas acho curioso como no Brasil sempre se sai do nada para a tolerância zero", diz o pernambucano, ressaltando que enquanto os controles nos EUA são ainda mais restritos, no Japão predomina o bom senso - com a única interdição à tatuagem de menores.
Sobre as clínicas que se tornaram verdadeiros mercadões da tatuagem, tampouco Jun faz restrições. Aferra-se à sua metáfora preferida e limita-se a dizer que seu produto é de outro tipo, artesanal. "Você pode comprar um terno pronto em uma loja de departamentos ou encomendá-lo, sob medida, a um alfaiate. Meu jeito de trabalhar pode parecer excêntrico, mas não é nada disso."
E cadê o espírito da coisa? "Às vezes me pego imaginando as pessoas que tatuei. Quantas dessas tatuagens estão escondidas sob ternos executivos? Quantas são usadas para intimidar, atrair, seduzir? Quantas são meros acessórios de moda? E, na verdade, isso não importa. O desenho não faz a tatuagem e a tatuagem não faz o homem. Sua tatuagem é tão bela, interessante e verdadeira quanto a vida que você vive."
Fonte: Estadão
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